Uma visão de si mesmo: um olhar ad intra.
A negação em ouvir a palavra primordial dada por Deus obscurece os dados objetivos da percepção que a pessoa tem de si mesma. A humanidade, corrompida pelo pecado, perde a capacidade de se reconhecer como a imagem divina, o que prejudica a relação com Deus, consigo mesma e com o próximo. É a desfiguração das relações interpessoais, evidente desde os primeiros relatos bíblicos, como na história de Adão e Eva e, especialmente, na de Caim e Abel, em que a vergonha, a culpa e o ódio fraternal ilustram a ruptura da comunhão original.
Embora o desejo pela justiça e pelo bem comum persista, é frequentemente sobreposto por falsos valores, tornando vital a intervenção de Deus, que lamenta a obstinação do coração humano, como registrado no Salmo: “Meu povo não escutou a minha voz” (Sl 80,12). O Papa Francisco, em sua exortação apostólica Evangelii Gaudium, adverte sobre o perigo de uma inversão de valores que se opõe ao desígnio divino. E aponta o risco de uma tristeza individualista, originada de um coração fechado e egoísta, resultando na perda da alegria do amor de Deus e do fervor em fazer o bem. Esse perigo ameaça tanto os não crentes quanto os fiéis, que podem se tornar pessoas ressentidas, queixosas, sem vida (EG 2).
A narrativa sobre Pedro exemplifica a luta interna entre o medo e a fidelidade a Deus, entre a negação e a consciência de sua vocação. Ao negar Jesus, Pedro se afasta de sua identidade, mas a redescobre ao reencontrar o olhar de Cristo, que lhe devolve o sentido de sua missão e o guia de volta ao caminho da fé. De maneira semelhante, o ser humano, ao reconhecer sua dignidade como criatura de Deus, encontra o verdadeiro sentido da vida, que se alicerça no amor incondicional de Deus, na liberdade responsável e na fraternidade.
Consciente de sua origem, o homem deixa de ser objeto; e, pelo autodomínio e doação de si aos outros, torna-se sacramento autêntico de Deus, pois é a única criatura querida por si mesma, na qual Deus, movido por um amor imenso, se dedicou a formar com suas mãos e a conceder não só a vida biológica, mas também a vida espiritual, em comunhão com Ele. Portanto, amar como Deus ordena é o único meio de satisfazer plenamente o coração humano, a genuína liberdade, a maior realização de sua identidade.
(17ª parte da sequência de reflexões sobre o tema “A Dignidade Humana sob o olhar de Deus“).