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Construímos com as heranças do passado e as aspirações do futuro

Construímos com as heranças do passado e as aspirações do futuro

Somos provavelmente a geração mais presentista da história, amamos tanto o presente que não raro sacrificamos o passado e o futuro, o que se explica, em parte, pelas próprias peculiaridades do presente: tempo da ação e da decisão, do existir, da confirmação do ser e da realização. Como tempo da decisão, o presente pode ser tanto graça quanto desgraça, afinal, nele se decide êxito ou malogro. Irrecuperável e intransferível, ele só pode ser vivido. Nem mesmo um conjunto seleto de biógrafos à disposição de uma pessoa, descrevendo detalhadamente todos os seus atos desde o nascimento, recuperaria ou traduziria a totalidade da sua existência, porque a vida vivida possui a dimensão de realizabilidade que pertence apenas ao sujeito que a experiencia, sem contar aquilo que é não revelável em cada pessoa, seus silêncios e entrelinhas. Nesse sentido, o presente pertence somente àqueles a quem foi dada a graça de vivê-lo. Vida e felicidade são decididas no hoje da existência, não em fixações do passado ou em projeções do futuro. Apesar de sua proeminência, o tempo presente não pode ser absolutizado e só existe em íntima conexão com o passado e o futuro. Sem a articulação com as outras dimensões temporais, torna-se limitado e tacanho, asfixia-se em si mesmo, como Narciso preso à própria imagem.

Se o presente se configura como tempo da ação e da decisão, o passado se caracteriza como tempo da memória, do discernimento e da interpretação. Carregamo-lo em nossos tecidos como herança biológica, psíquica, espiritual, familiar, pessoal e social. Não começamos abruptamente do ponto zero, “somos o que os outros construíram em nós”. O passado nos desinstala de nossa autossuficiência presentista, recorda que nossa urdidura se dá com material que nos antecede: uma placenta, uma família, uma geração… Sem a percepção e a memória do passado, a vida recai nos velhos erros, repete os mesmos pecados, comete grosserias e barbáries históricas. Sem passado não há aprendizado, já que ele permite a sabedoria do que se deve evitar e oferece os caminhos por onde trilhar. O passado é retrovisor para o presente: uma olhadela para trás aguça o reflexo da vida, sua profundidade e sensibilidade. Por isso, ele é tão fundamental para a tradição bíblica, pois recorda as “gestas” maravilhosas de Deus em favor do seu povo. Viver bem o presente consiste, em boa medida, na fidelidade ao passado. Em termos católicos, significa fidelidade à tradição eclesial.

Sem o vislumbre do futuro, o tempo presente corre o risco de se sufocar nas experiências imediatas, principalmente as inumeráveis e sedutoras ofertas de prazer da sociedade pós-moderna, e tornar-se vida sem sonhos, encantamento ou projeção. O futuro é o tempo da visão. A vida sem projeto pena. Por menores que sejam nossos planos pessoais ou coletivos, eles alimentam a nossa sede de viver, buscar, sonhar e querer, porque vivemos a nos projetar, a galgar o futuro com as mãos, procurando dar sentido ao que fazemos. Esse é o nosso modo de viver no presente, olhando para trás e para frente, simultaneamente. O primeiro nos remete à noção de herança e o segundo, à ideia de construção, de sermos menos reféns do implacável movimento de arrasto do tempo, simbolizada por Cronos (imagem do tempo), divindade na mitologia grega que gerava filhos e os engolia, como um dia engole o outro, um mês outro mês, e assim, sucessivamente.

Para a fé cristã, o saber viver inclui a correta articulação das três dimensões temporais. O passado, como tempo da promessa e da revelação de Deus, é fundamental e incide sobre o presente: “Hoje se cumpriu a Escritura”, afirmou Jesus na sinagoga de Nazaré ao ler e interpretar o texto de Isaías. Deus se revelou na história e conhecemos seus desígnios a partir de uma época, lugar e momento histórico específicos. A singularidade do presente está em ser o tempo da tomada de decisão, de vivência da fé, da opção ou não pelo Reino de Deus “Quem põe a mão no arado não pode olhar para trás”. As escolhas do hoje gestam o amanhã. O que seremos já está, de algum modo, inscrito no que somos. Contudo, as aspirações do futuro modelam o hoje. O futuro é o tempo da possibilidade, da plenitude sonhada, da paz desejada, e de todas as reconciliações como o profeta Isaías aspirou: “Então o lobo morará com o cordeiro, e o leopardo se deitará com o cabrito. O bezerro, o leãozinho e o gordo novilho andarão juntos e um menino pequeno os guiará. A vaca e o urso pastarão juntos, juntas se deitarão as suas crias. O leão se alimentará de forragem como o boi. A criança de peito poderá brincar junto à cova da áspide, a criança pequena porá a mão na cova da víbora. Ninguém fará o mal ou destruição nenhuma em todo o meu santo monte, porque a terra ficará cheia do conhecimento de Iahweh, como as águas enchem o mar” (Is 11,1-9). Construímos o presente com a herança e o material do passado (“o novo é feito com material do velho”), mas com os sonhos, visões e aspirações do futuro.

Por Rivelino Santiago de Carvalho
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