Estamos vivendo tempos muito difíceis com a rápida proliferação da COVID-19, a pandemia do coronavirus. Há muita informação sobre o que está ocorrendo mundo a fora e muita politização, polarização e espetacularização de uma problemática tão séria como esta.
Diante dessa realidade quero dialogar sobre esse contexto à luz da psicanálise, da espiritualidade e da responsabilidade social.
Segundo os dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), os números dos infectados por outros vírus, assolam o mundo há algum tempo. Estes dados encontram-se no artigo do Pe. Andrea Vicini, publicado na revista La Civiltà Cattolica de janeiro de 2020:
“Estima-se que, em 2019, 37,9 milhões de pessoas no mundo foram testadas positivas com o vírus HIV. Se considerarmos as estimativas gerais desde o início da pandemia, as pessoas soropositivas são 74,9 milhões, com 32 milhões de mortes causadas pela AIDS. Calcula-se que, em 2018, 3,2 bilhões de pessoas viviam em áreas de risco de transmissão da malária em 92 países do mundo, especialmente na África subsaariana, com 219 milhões de casos clínicos e 435 mil mortos, dos quais 61% eram crianças menores de cinco anos. Segundo a OMS, 10 milhões de pessoas em todo o mundo adoeceram de tuberculose em 2018, com mais de 1,2 milhão de mortes, das quais 11% entre crianças e adolescentes com menos de 15 anos”.
Estes dados nos alarmam e nos questionam, mas não despertam nosso interesse. Atualmente, estamos diante de uma situação, de um vírus, invisível, contagiante, desafiador, ainda sem solução, pois não sabemos como agir. Hoje, pelos profissionais da saúde, a ordem é ficar em casa, lavar as mãos ou fazer uso de álcool em gel e evitar abraços, beijos e aglomeração de pessoas, mas não temos esse hábito.
Não nos interessa ter audiência, mas dar dignidade as pessoas e ajudá-las. Esta é a grande oportunidade para expressar nossa capacidade de coesão social. Esse tempo deve ser enfrentado com criatividade e generosidade.
Não estamos em guerra. Não é preciso inventar um “inimigo”. Temos que refutar essas retóricas. Estamos, sim, diante de uma das mais graves emergências sanitárias global. Estamos colhendo os frutos amargos que este modelo de economia mundializado e concentrador plantou.
O psicanalista Sigmund Freud (1856-1939) escreve, em 1930, um artigo intitulado “O Mal-Estar na Civilização” com o objetivo de ajudar a pensar a difícil condição da humanidade, seu sofrimento e as dificuldades de se organizar coletivamente, e, apesar dos desafios, conseguir bons resultados. Ainda sentimos que nossa relação com o mundo e com suas novas realidades nos deixam desamparados, impotentes e suscetíveis a constantes ataques: contra a natureza, que sofre com o poder dos dominadores e destruidores; com nossa fragilidade, em especial do nosso corpo, que pode adoecer a qualquer momento como este vírus; com os relacionamentos, na família, nas relações amorosas ou no trabalho, que já passavam por grandes dificuldades e, agora, a convivência constante, forçada, tem contribuído ainda mais para a discórdia, brigas, separações.
A falta de quase tudo, a fome, a dor, o desespero, o pânico nos deixam cegos: a massa que se desfaz fugindo o mais longe possível da fonte da ameaça sempre tende a alimentar o caos e a destruição. O problema do vírus é complicado pelo fato da fonte da ameaça nunca poder ser localizada, e pelo fato de ele se espalhar entre nós de maneira imprevisível.
O que nos resta fazer neste contexto? Resistir à tentação do pânico, responder à ameaça com senso de responsabilidade, não apenas considerando o horizonte da própria vida individual, mas percebendo que participamos conscientemente de uma ação civil coletiva que envolve a vida inteira da sociedade, a partir de nossa comunidade. A solidariedade digital, por meio das redes sociais, é muito importante, mas não basta.
Em sua longa trajetória, a vivência e o cultivo da espiritualidade têm nos ensinado que há uma estreita ligação entre o Espírito Santo, a comunidade eclesial e o mundo. Estamos encarnados no mundo como nos adverte a Carta a Diogneto, escrita no segundo século da era cristã:
“Os cristãos não se distinguem dos outros homens nem pelo país de origem, nem pela linguagem nem pela maneira como se vestem. Residem em suas próprias pátrias, porém, como forasteiros. Estão dentro da carne, porém, não vivem segundo a carne. Passam o tempo sobre a terra, porém, têm os direitos da cidadania nos céus. São mortos e assim se lhes faz obter a vida. São pobres e enriquecem a muita gente. Falta-lhes tudo e têm abundância em tudo”.
Sejamos solidários aos sofrimentos e alegrias de cada pessoa (1Cor 12, 25), reerguendo “as mãos enfraquecidas e os joelhos calejados” (Hb 12,12). Sejamos uma Igreja samaritana, capaz de ver, sentir compaixão e cuidar!