Que sonhos temos sonhado? Que sonhos temos alimentado?
Em seu instigante livreto “Ideias para adiar o fim do mundo”, o líder indígena, ambientalista, poeta e escritor Ailton Krenak nos provoca: ainda temos um sonho coletivo? Ainda queremos para o mundo algo que seja bom para todos? Que inclua tudo e todos? Suas reflexões nos desafiam a revermos o nosso estar-no-mundo. Ao falar do sonho, ele não se refere à atividade onírica, peculiar ao sono, mas ao “exercício disciplinado de buscar no sonho as orientações para as nossas escolhas do dia a dia”. Sonhar é projetar um desejo rumo à realidade. Em muitas culturas os sonhos foram compreendidos como canais pelos quais acessamos realidades intangíveis e que podem nos ajudar a achar os caminhos certos para a vida na sua imanência. Parece que hoje as pessoas estão perdendo esta capacidade de sonhar, de desejar algo grande e bom para a coletividade. Estão cada vez mais ensimesmadas em seu “sonho pequeno”, em seu particular projeto de serem felizes “sozinhas”.
Sem um sonho coletivo vamos despersonalizando tudo ao nosso redor, vamos perdendo a capacidade de reconhecer o valor de cada coisa existente em si mesma. E assim vamos nos apropriando de tudo com o objetivo de que o existente esteja unicamente a serviço dos nossos projetos pessoais. Falando, por exemplo, sobre a despersonalização e destruição dos rios, Ailton Krenak nos pergunta: “como reconhecer um lugar de contato entre esses mundos [o do sonho e a realidade], que têm tanta origem comum, mas que se descolaram a tal ponto de termos hoje, num extremo, gente que precisa viver de um rio e, no outro, gente que consome rios como um recurso?”.
Sem conseguir projetar um mundo melhor, mais humanizado – especialmente a partir das possíveis lições que poderão advir da amarga experiência da pandemia da covid-19 – a humanidade se perderá de si mesma e caminhará rumo ao abismo.
Na Bíblia o sonho sempre foi um recurso de contato com uma realidade muito maior e transcendente na qual o “sonhador” vai vislumbrando os caminhos mais acertados para trilhar. Sonhar move a vida, move o mundo. No longínquo séc. VI a.C. o profeta Isaías já nos apresentava o sonho de Deus para o mundo: “Com efeito, criarei novos céus e nova terra, as coisas de outrora não serão lembradas, nem tornarão a vir ao coração. Alegrai-vos, pois, e regozijai-vos para sempre com aquilo que estou para criar[…]”. Isaías fala do sonho com um mundo novo onde o lobo e o cordeiro comem juntos, onde o menino morrerá aos cem anos, onde quem planta uma vinha come dos seus frutos, onde quem constrói casas, nelas habita. Perdendo a capacidade de sonhar um projeto inclusivo, que alcance todos, vamos deixando morrer a vida em nós e no nosso entorno.
O projeto do reinado de Deus é o “grande sonho” proclamado por Jesus de Nazaré. Os cristãos e todas as pessoas de boa vontade são exortadas a desejar e empenhar-se por um mundo cujos bens possam ser compartilhados e usufruídos por todos, um mundo que seja cuidado por todos; um mundo onde a convivência harmônica entre os diferentes seja possível, um mundo onde cada pessoa sinta-se integrada a si mesma, aos outros e a Deus Pai . O último livro da Sagrada Escritura termina proclamando a “esperança-certa” de que algo novo surgirá: “Vi então um novo céu e uma nova terra – pois o primeiro céu e a primeira terra se foram e o mar já não existe mais […]”1.
É urgente sonharmos com uma realidade onde o mal não impere. É urgente sonharmos com o Bem germinando e dando frutos em todos os espaços humanos. É urgente sonharmos com o Bem para que o Bem se estabeleça!
Por Virlene Mendes
1. Na Bíblia o mar é, simbolicamente, o lugar do caos, da desintegração, do Mal – em todas as suas faces.