Pensar é, entre uma infinidade de operações mentais, desvelar, interpretar e construir o mundo em imagens, não as dos pixels eletrônicos do universo asfixiante das telas que nos engolem, em prejuízo da palavra, e tampouco, as da sociedade de consumo que nos devoram pelo desejo. Mundo das imagens e marcas, segundo Gilles Lipovetisky, “Quem quiser dizer o que foram o século XX e o princípio do XXI deverá necessariamente dizer Coca, Levi’s, Vuitton, Apple, Sony, Nike, Dior, Rolex…”. Refiro-me, no entanto, à outra imagética, aquela oriunda da nossa capacidade ficcional de criar e de estabelecer planos inexistentes com conceitos – “planômeno”, para Deleuze e Guattari -, metáforas e símbolos. O sociólogo polonês, Zygmunt Baumann, foi artífice nesse ofício. Liquidez, sua metáfora catalizadora, remete à fluidez. Com ela traduziu a característica principal do mundo moderno, a capacidade de adaptar-se às mais diversas situações, tal como o líquido acomoda-se em qualquer recipiente. Outras tantas imagens foram cunhadas por Baumann na compreensão da cultura contemporânea. Particularmente, gosto muito dessa: “Bem-vindos à temporada dos ciclones/furacões!”.
A metáfora do ciclone/furacão denota como poucas os desafios da cultura, da religião e da fé no tempo da “crise epocal”. Isso porque a força ciclônica da mudança lança tudo para cima, desenraizando os fundamentos mais estáveis. Esboroamento total, de modo que pouco ou nada sobra. Passada a tormenta, o momento de rearranjamento consiste em ver o que sobrou, calcular os prejuízos e começar a pôr as coisas no lugar, tragicamente, à espera de novos ciclones, talvez mais potentes e destrutivos. Se trocarmos furacões por epidemias e pandemias, a sensação é semelhante: “Bem-vindos ao século XXI!”, que para muitos – principalmente os historiadores – agora se iniciou de fato. A consciência da incerteza, contributo dos tempos modernos – a maior certeza do conhecimento no século XX foi a da indestrutibilidade das incertezas -, aguçou-se ainda mais com a pandemia do novo coronavírus “SARS–CoV–2” e de outros vírus possíveis. Deixou de ser propriedade da classe dos intelectuais e foi patenteada por todos. A imagem bucólica de dormir com a cabeça tranquila no travesseiro já não mais nos pertence. Vivemos o tempo da angústia, da preocupação e da decepção. Foram-se os tempos presentistas e descontraídos inaugurados pela geração de 60.
Momentos de incerteza ou de “crise epocal” são acompanhados de angústias, medos, apreensões e dúvidas. Neles, arvora-se quase naturalmente a seguinte questão: como conviver e ou enfrentar as incertezas? O pensador Edgar Morin propôs como resposta à tarefa, três lúcidos caminhos: pensar a ação, criar estratégias e empenhar a aposta. Pensar a ação significa exercitar o pensamento crítico antes de qualquer tomada de decisão, pois uma ação iniciada comporta algo de imprevisibilidade. Nunca se sabe aonde vai dar, já que ela foge por completo ao controle humano. Daí a necessidade de pensar bem para se evitar o falseamento e a mentira para si mesmo. Criar estratégias passa, portanto, por se preparar para as possíveis tribulações, reunindo as informações e os acasos surgidos durante o processo. A estratégia antecipa-se às crises. Por fim, a aposta opõe-se à resignação e carrega consigo sempre um risco, pois “todo destino humano implica uma incerteza irredutível, até na absoluta certeza, que é a da morte, pois ignoramos a data” (Edgar Morin). Em linguagem religiosa, a aposta pode ser traduzida pela fé e esperança.
Da perspectiva da fé, o questionamento que se impõe não é outro senão como vivê-la em temporadas ciclônicas. Saber viver a fé em temporadas ciclônicas ou pandêmicas passa por esse tirocínio: construir os abrigos necessários à sobrevivência e adaptar-se às respostas circunstanciais que se tem de aprender a dar. Provavelmente, a virtude teologal mais benfazeja seja aquela que está à nossa frente, como fiapo de luz diante dos olhos, para nos ajudar na travessia da noite escura. Mesmo que ela pareça nalguns momentos esvanecer-se, poderá ser evocada porque está aninhada no âmago da existência humana. Mais do que isso, está verdadeiramente no coração da fé cristã. Não sem razão São Paulo a erigiu ao pódio das três virtudes, por excelência, da fé cristã (1Cor 13,13). De outro modo, a esperança configura o ethos cristão: “Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente. E não somente ela. Mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos interiormente, suspirando pela redenção do corpo. Pois nossa salvação é objeto de esperança; e ver o que se espera não é esperar. Acaso alguém espera o que vê? E se esperamos o que não vemos, é na esperança que o aguardamos” (Rm 8,22-25). Vivemos na esperança e ela constitui nosso modo de ser. Quando ela desaparece do nosso horizonte existencial, estamos mais próximos daquela situação que a tradição judaica formulou da sua experiência exílica: “O exílio começa não quando se deixa a pátria, mas quando não se tem mais no coração a saudade ardente: ‘O verdadeiro exílio de Israel no Egito foi que os hebreus aprenderam a suportá-lo’” (Martin Büber). Fé e esperança para a tradição bíblica são indissociáveis. “Por meio da fé, o ser humano entra no caminho da verdadeira vida, mas somente a esperança o conserva nesse caminho” (Jürgen Moltmann). A fé é o fundamento da esperança, e esta o alimento daquela.