Há uma questão fundamental a ser colocada hoje: diante de tantas interpretações de Jesus Cristo, é possível ter uma que seja realmente autêntica, a forma mais correta de crer em Jesus Cristo? Caso seja possível encontrar essa interpretação autêntica, qual seria o critério orientador de nossa procura da fé?
Seria a questão de definir os vários reguladores de nossa fé e de estabelecer uma hierarquia entre eles, a partir do que é mais fundamental. Essa questão é fundamental, sobretudo, considerando a situação atual da Igreja Católica dentro da qual existem hoje práticas conflitivas, que avançam suas interpretações conforme suas respectivas práticas e suas opções ideológicas.
Como estabelecer quem tem razão e mesmo encontrar quem dá as cartas? É possível estabelecer de uma vez por todas qual é a identidade católica para sempre ou ela vai se explicitando em cada conjuntura histórica, conforme os tempos? Descobre-se que, para qualquer lado que se volte, a questão está sujeita à manipulação e à interpretação subjetiva. Esse critério onde estaria? Nas Igrejas? Na mesma história humana? Em sua cultura “cristã”? No próprio Jesus Cristo?
Para trazer alguma luz sobre a questão, propomos três proposições:
1- A comunidade cristã, enquanto vive e celebra sua fé em Jesus Cristo, é o primeiro e o mais próximo regulador de nossa fé. O lugar imediato no qual aprendemos quem é Jesus Cristo é a comunidade cristã, no testemunho de sua vida e de sua fé. Mas a Igreja não é o fundamento de si mesma. Por isso ela não se explica a si mesma nem a sua fé. O que a Igreja explicita em relação a Jesus Cristo é já uma interpretação recebida. A Igreja é “sacramento”, sinal e instrumento do Reino de Deus, de Jesus Cristo. Essa interpretação não poderá existir sem um fato a ser interpretado. O dogma cristão já é ele mesmo interpretação que pressupõe o fato de uma existência histórica, a de Jesus de Nazaré, morto e ressuscitado “por nossa salvação”, existência essa a ser interpretada na sua totalidade humano-divina.
2- A totalidade humano-divina de Jesus de Nazaré, morto e ressuscitado, Senhor da história, como o regulador definitivo e nunca ultrapassado e ultrapassável da fé. O que Jesus é para nós ultrapassa, transcende as fronteiras de qualquer objetivação histórica da fé e as próprias fronteiras das Igrejas. Ora, se a Igreja interpreta quem é Jesus Cristo, mas não tem o monopólio desta interpretação, isso significa que Jesus Cristo é maior do que a Igreja. O significado universal de Jesus Cristo transcende as fronteiras da instituição eclesial, qualquer que ela seja. Na verdade, a interpretação de Jesus Cristo não pode ser contida e controlada simplesmente pelas confissões cristãs. O fenômeno religioso cristão que assistimos hoje nos mostra que é cada vez mais difícil determinar uma “ortodoxia” e que cada vez mais deve-se apelar para uma práxis, uma história, para poder verificar o que é realmente específico cristão.
3- A interpretação autêntica de Jesus Cristo liga-se a um acontecimento historicamente datável e humanamente verificável que é sua prática histórica e seu testemunho da proximidade de Deus. Se a verdadeira imagem de Jesus não pode ser simplesmente baseada na pura interpretação da Igreja por ela mesma, mas não pode também basear-se apenas numa mera prática histórica dos cristãos e das cristãs, por melhor que seja, por mais humanizadora que se nos apresente, então onde nossa fé vai fundamentar-se? Dentro da tradição eclesial, nossa interpretação da fé fundamenta-se num fato objetivo, histórico, humano, verificável: Jesus Cristo e seu testemunho da proximidade de Deus pela sua prática de vida, reconhecida pela ressurreição como o Verbo Encarnado, o Filho de Deus. Trata-se de discernir a pessoa, a vida, a missão e o destino de Jesus de Nazaré. Falamos aqui de fundamento da interpretação da fé e não diretamente da fé. O fundamento da fé é a Palavra revelada de Deus, é Deus mesmo enquanto se dá a conhecer, para nós cristãos, em Jesus Cristo.
A importância dessa questão está no fato de que, se cada grupo ou cada Igreja compreendesse Jesus de seu jeito, no horizonte de suas práticas sociais e de seus interesses ideológicos, acabar-se-ia perdendo de vista o essencial: o acontecimento de Jesus Cristo Libertador. Isso significa que é preciso buscar sempre de novo o ponto de partida, que não pertence a ninguém, a nenhum grupo particular, mas do qual todos podem falar, do mesmo e idêntico Jesus Cristo, Palavra eterna de Deus-Pai-Mãe. Isso é um convite para deixar de lado férteis imaginações de um Jesus angelical, romântico e espiritualista, para abraçarmos a Jesus, a partir de sua encarnação, com cheiro de terra, de carne e do hálito divino em plenitude, em sua aproximação realmente histórica e humana.
Por Padre Nelito Dornelas